Vimos no texto “Microcirurgia: uma opção de alta complexidade em cirurgias de cabeça e pescoço” que essa técnica permite a reconstrução microcirúrgica de áreas afetadas por câncer e traumas. Com ela, é possível levar tecidos vascularizados de outras regiões do corpo do paciente para o local afetado. O médico refaz a conexão precisa de artérias, veias e nervos. O objetivo principal é devolver as capacidades funcionais e estéticas perdidas ao paciente.
“Nas microcirurgias, os cirurgiões manipulam estruturas minúsculas do corpo humano que não podem ser detalhadamente vistas a olho nu. Este trabalho de reconstrução microcirúrgica é realizado com instrumentos de amplificação, como microscópios ou lentes de magnificação.” – Dr. Rafael Nunes Goulart, Médico Cirurgião de Cabeça e Pescoço (CRM/SC 15664 e RQE – 12369).
Quando é necessária uma reconstrução?
Todas as cirurgias, sejam elas na cabeça, no pescoço ou em qualquer outro lugar do corpo, requerem alguma técnica de reconstrução. Elas restabelecem a integridade dos tecidos que foram alterados pela cirurgia. Essas opções variam muito em grau de complexidade, sendo utilizada aquela que melhor se adequa a cada situação específica. A seguir, abordaremos os tipos de reconstrução em cirurgias de cabeça e pescoço.
Tipos de Reconstrução em Cirurgias de Cabeça e Pescoço
Existem diferentes tipos de reconstrução cirúrgica. Os principais são:
Fechamento primário (cicatrização por primeira intenção)
Quando as bordas resultantes da região afetada (sejam elas por trauma ou retirada de tumores) são aproximadas por pontos e a integridade dos tecidos restabelecida.
Fechamento secundário (cicatrização por segunda intenção)
Quando não é realizado o fechamento primário. Dessa forma, a ferida fica “aberta” e a cicatrização ocorre das camadas mais profundas até as mais superficiais, espontaneamente. Nessa situação, o tempo para a cicatrização completa é maior.
Fechamento terciário (cicatrização por terceira intenção)
Quando não há possibilidade de realizar o fechamento primário ou secundário. Isso pode acontecer por impossibilidade técnica ou por possíveis sequelas estéticas e funcionais que elas trariam.
Nesses casos, pode-se lançar mão de técnicas que utilizam tecidos de outros locais do corpo do próprio paciente para cobrir e restabelecer a integridade da área afetada. Entre as opções de reconstrução em cirurgias de cabeça e pescoço, estão:
Retalhos locais
São tecidos vascularizados, em torno da área que se deseja cobrir, que podem ser girados, sobre seu próprio eixo, para cobrir a região afetada. Dessa forma, a área a ser reconstruída é fechada com o retalho e a área “doadora” do retalho é fechada de forma primária.
Retalhos loco-regionais
São também tecidos vascularizados, mas um pouco mais distantes da área que se deseja cobrir. São, geralmente, de uma outra região do corpo em relação a área a ser reconstruída, embora com uma certa proximidade. Da mesma forma como os locais, eles são rodados, sobre seu próprio eixo, para cobrir a região afetada, mantendo sua vascularização original. Dessa forma, a área a ser reconstruída é fechada com o retalho e a área “doadora” do retalho é fechada de forma primária ou ainda com enxertos.
Enxertos
É quando se utiliza tecido do próprio paciente, de uma outra região do corpo, sem preocupação com a vascularização desse tecido doador, que é colocado no local a ser reconstruído. por sua baixa complexidade, são mais sensíveis a traumas e movimentos.
Retalhos livres vascularizados (autotransplante)
Trata-se do método mais sofisticado de reconstrução cirúrgica. Nele, os cirurgiões são capazes de selecionar e retirar cuidadosamente tecidos de outras partes do corpo do paciente. Os médicos preocupam-se com a vascularização e inervação, e em conectar esse material à área afetada pelo trauma ou doença, restabelecendo a vascularização e a inervação por técnica microcirúrgica.
Quanto utilizar um retalho livre vascularizado (autotransplante)?
Na Especialidade de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, o autotransplante costuma ser utilizado em casos que envolvem reconstrução após o tratamento cirúrgico de câncer, como o de língua, o de laringe e o de faringe. Especialmente em pacientes que já passaram por mais de um tratamento e que já realizaram radioterapia (que também agride células saudáveis).
Quando indicado, o tratamento cirúrgico do câncer deve ser tão agressivo quanto a própria doença, retirando de forma completa todo o tumor. Em alguns casos, para se conseguir esse objetivo, pode ser necessário a remoção de tecidos nobres como pele, músculos e ossos, o que costuma resultar em perdas estéticas e funcionais importantes.
Com o autotransplante, em casos selecionados, os resultados são superiores às outras formas de reconstrução, minimizando as perdas de funções importantes por conta das lesões, além da qualidade estética. Isso confere aos pacientes uma melhor qualidade de vida.
A reconstrução microcirúrgica, com autotransplantes, pode ser realizada na mesma cirurgia de retirada do câncer. Assim, enquanto uma equipe faz a ressecção do tumor, um outro cirurgião já prepara o autotransplante.
Os procedimentos microcirúrgicos também podem ser realizados num segundo momento, como em situações de traumas com perda de grande quantidade de tecidos.
No entanto, para que o tratamento seja efetivo, e que a reconstrução microcirúrgica tenha sucesso, é necessário um planejamento antecipado e tão cuidadoso quanto o próprio procedimento. É o que veremos abaixo.
Planejando o autotransplante
O planejamento de uma reconstrução microcirúrgica com autotransplante leva em conta não só as características do indivíduo, mas também o tipo de doença ou trauma sofridos. E, especialmente, quais as estruturas afetadas em cada caso.
Por isso, antes do tratamento cirúrgico, é necessário mapear exatamente o que precisa ser reconstruído. E isso é feito com muito cuidado.
Além da anamnese, da avaliação clínica e física, podem ser solicitados exames de imagem como tomografias e ressonância magnética.
“Assim, dependendo da área afetada pelo câncer ou pelo trauma, visto pela avaliação clínica e pelos exames complementares, é possível saber qual a melhor opção de utilização do retalho livre vascularizado (se será necessário restabelecer a função de pele, músculo, gordura ou osso).” – Dr. Rafael Nunes Goulart, Médico Cirurgião de Cabeça e Pescoço (CRM/SC 15664 e RQE – 12369).
Com todas essas informações em mãos, o médico responsável pode então planejar quais áreas do corpo do próprio paciente serão as melhores áreas doadoras para cada tipo de tecido necessário. Assim, no dia da cirurgia, tudo é feito de forma mais rápida e eficiente.
A atenção especial fica por conta das reconstruções em cirurgias de cabeça e pescoço que envolvem ossos.
Autotransplante de Tecidos Ósseos
Restabelecer a função de um local que foi necessária a retirada de um fragmento ósseo, como parte do tratamento cirúrgico de um câncer, por exemplo, é um desafio.
A reconstrução microcirúrgica com autotransplante de osso (retalho livre vascularizado) exige cuidados ainda mais especiais. Para que seja realizado de forma adequada, é necessário que a área doadora possua algumas características semelhantes ao osso que foi retirado, o que nem sempre acontece.
Um exemplo disso é a reconstrução da mandíbula após o paciente ter sido submetido a retirada de um segmento ósseo dela, para o tratamento do câncer. A mandíbula é um osso fundamental para a alimentação e muito importante para a fala.
“Nessas situações, o melhor osso doador, por suas características, costuma ser a fíbula, um dos dois ossos da canela (perna). E aqui está o desafio: transformar um osso longo, reto e triangular (fíbula) num osso com algumas curvas, com bordas arredondadas e exatamente do tamanho que foi retirado (mandíbula), preservando sua vascularização.” – Dr. Rafael Nunes Goulart, Médico Cirurgião de Cabeça e Pescoço (CRM/SC 15664 e RQE – 12369).
Planejamento Digital – Prototipagem
Para que seja possível adaptar o osso da fíbula (perna) no local onde antes era a mandíbula, utiliza-se ferramentas de computador (software), associada às imagens de tomografias do paciente, para planejar o novo formato da fíbula (em mandíbula), da forma mais precisa possível. Todo esse planejamento digital é chamado de prototipagem.
“No planejamento digital, nós, em parceria com os cirurgiões bucomaxilofaciais, realizamos virtualmente todo o trabalho de lapidação dos ossos. O resultado dessa cirurgia virtual é impresso em 3D e utilizado, como guia, no dia da cirurgia. Durante a cirurgia, esse molde nos ajuda a esculpir manualmente as estruturas ósseas do paciente, conferindo maior precisão e segurança no restabelecimento dos tecidos.” – Dr. Rafael Nunes Goulart, Médico Cirurgião de Cabeça e Pescoço (CRM/SC 15664 e RQE – 12369).
O trabalho de esculpir o osso da área doadora é todo feito à mão, de forma artesanal, pelos cirurgiões. Por isso a qualificação e a experiência da equipe cirúrgica são tão importantes para o resultado da reconstrução em cirurgias de cabeça e pescoço.
No geral, o tempo de internação de pacientes de autotransplantes bem sucedidos é em torno de uma semana. Esse período pode variar dependendo da evolução de cada caso.
Seguir as orientações do médico responsável durante o período pré e pós-operatório é fundamental para o sucesso da reconstrução em cirurgias de cabeça e pescoço. Converse com os profissionais da NICAP. Conte conosco!
Sobre o autor:
Dr. Rafael Nunes Goulart (CRM/SC 15664 e RQE – 12369) Possui graduação em Medicina pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2003-2009). Especialização em em Cirurgia Geral pelo Hospital Regional de São José – Dr. Homero de Miranda Gomes (2010-2012) e Cirurgia de Cabeça e Pescoço pelo Centro de Pesquisas Oncológicas – CEPON em Florianópolis (2013-2015). Especialista em Cirurgia de Cabeça e Pescoço pela Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (2015). Especialização em Microcirurgia Reconstrutiva em Cabeça e Pescoço pela Escola Européia de Reconstrução Microcirúrgica – Universidade Autônoma de Barcelona (2018-2019). Atualmente é Cirurgião de Cabeça e Pescoço do Imperial Hospital de Caridade, SOS Cardio, Hospital Baia Sul, Hospital Governador Celso Ramos, Centro de Pesquisas Oncológicas (CEPON) e membro do Núcleo Integrado de Cirurgia de Cabeça e Pescoço (NICAP).